A prevenção e os riscos da perda de credibilidade

Quando se fala em Prevenção de desastres estamos nos referindo a um conjunto de medidas ou preparação antecipada para algo que poderá nos causar dano. Isso significa a necessidade do profissional de gestão de risco de executar um planejamento a partir de informações do passado e do presente, somadas ao seu conhecimento, experiência, equilíbrio e bom senso, o qual lhe permitirá projetar o futuro com certa margem de segurança. Fica claro, portanto, que qualquer planejamento futuro parte de uma base de dados (do passado) confiável e aqueles que transmitem informações confiáveis adquirem, ao longo do tempo, a marca da credibilidade. A credibilidade é o somatório de anos e anos de uma relação de confiança nas informações transmitidas ou atitudes tomadas, portanto, ela não se impõe, mas é construída ao longo do tempo. A credibilidade pode ser adquirida na forma pessoal ou de um grupo ou ainda institucional, tanto governamental quanto privada. Podemos ou não confiar neste ou naquele individuo, em uma marca, em um produto, no governo, no congresso, na justiça, em crenças religiosas, na polícia, na mídia, etc. Difícil é separar a posição do individuo com a do órgão ou a instituição na qual está inserido e que nem sempre a sua manifestação pessoal representa o pensamento daquela instituição.

Desde os nossos primeiros anos de vida percebemos que a confiança adquirida em nossos pais nos deixa mais tranquilos e temos a sensação da segurança quando próximos deles, de alguém que nos protege de todos os perigos. Isso fica bem explícito na reação de felicidade dos bebês quando próximos dos seus pais ou ainda nos gritos de desespero quando se sentem longe deles, demonstrando as primeiras reações (inatas) de percepção de risco e medo. Dizem que as crianças não têm percepção de risco, mas o mais provável é que tenham um excesso de confiança nos seus pais, que (para elas) sempre estarão por perto para protegê-las. Mas os pais sabem que isso não é verdade e não poderão criar os seus filhos dentro de uma bolha protetora imune a todas as ameaças e riscos. A melhor atitude a ser tomada é a de bem prepará-los para enfrentar os perigos que irão se apresentar ao longo da vida. E quanto maior a confiança dos filhos em relação às palavras e atitudes dos pais, mais facilmente eles irão incorporar esses ensinamentos nas suas próprias vidas e se tornarão cada vez mais preparados para viver em sociedade e, portanto, mais resilientes.

Mas a necessidade da confiança em alguém ou em grupos irá continuar, considerando que o ser humano é um ente essencialmente social e outros atores passarão agora a exercer o papel de transferir confiança e ganhar credibilidade, como é o caso dos professores, que nos primeiros anos de escolaridade representam a continuidade do ambiente familiar, de transferência de conhecimento, amizade, carinho e (desejável) bons exemplos a serem seguidos. Nesse processo vêm as novas amizades, os colegas de trabalho, e outros formadores de opinião como artistas, atletas, cientistas, políticos e tantos outros que a mídia se encarrega de projetar. Mas a confiança e credibilidade continuarão a ser um importante instrumento de sustentação e equilíbrio da malha social.

Um conceito muito difundido é o de que tudo o que é científico é confiável, verdadeiro e, portanto, incontestável. Uma das definições de ciência diz que “é corpo de conhecimentos sistematizados adquiridos via observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenômenos e fatos, e formulados metódica e racionalmente”. A primeira evidência é que a Ciência é dinâmica, ela vai acumulando informações, cruzando dados, experiências e criando novos conceitos. Nesse caso ela é verdadeira até uma determinada data, pois novas descobertas podem trazer novas evidências e o que era verdadeiro ontem poderá ser falso hoje. O mais preocupante é que a ciência é construída por seres humanos, sujeitos a erros e acertos, com boas e (infelizmente) más intenções.

Vimos recentemente, em pouco mais de cinco meses, desde o inicio da pandemia do Coronavírus, o número de vezes em que a OMS mudou de opinião e por causa disso, levantando certa suspeição por parte de alguns dirigentes mundiais sobre os seus posicionamentos políticos ou geopolíticos que estariam se sobrepondo a fatos científicos. Até que ponto esses fatos abalaram a sua credibilidade só no futuro saberemos. Na mesma linha vimos uma importante revista científica, reconhecida mundialmente, ter se retratado publicamente sobre a fragilidade científica de um artigo publicado, com impacto mundial no tratamento da Covid-19, artigo esse retirado a pedido dos próprios autores do trabalho. Não é a primeira vez que esse fato ocorre e a credibilidade da revista sai seriamente abalada do episódio.

E por último, gostaria de abordar o fator de credibilidade da mídia. Já falei sobre o assunto no artigo do papel da mídia na divulgação de ameaças e desastres, mas agora vale salientar o grande risco que a mídia está assumindo, no momento atual, de perda da sua credibilidade junto à população, longamente construída em décadas de jornalismo de qualidade no país. A credibilidade da mídia depende muito do seu grau de independência e imparcialidade quanto ao seu posicionamento frente aos grandes embates nacionais. Em algumas situações há um sentimento de que a mídia brasileira vem tomando partido de certos posicionamentos, levando boa parte da população a uma perda de confiança no sistema como um todo, trazendo uma potencial perda de credibilidade. Uma informação mesmo verdadeira pode induzir a uma ou outra mensagem caso ela venha fora de contexto; basta omitir um detalhe para mudar a interpretação dos fatos.

A informação descontextualizada é até mais grave do que a falsa mensagem, pois esta última é mais visível, geralmente grosseira e fácil de ser identificada e até punida judicialmente; já a informação fora de contexto é subliminar, subjetiva, depende da interpretação de cada um e pode levar os incautos a interpretações equivocadas, tanto para um lado quanto para o outro. Um instrumento que vem sendo muito utilizado pela grande mídia, dos dois campos ideológicos, é o do debate, com tempos rigorosamente iguais para cada debatedor, geralmente de grupos ideológicos opostos, como se isso fosse garantia de um posicionamento isento e democrático. Basta escolher de um lado, um debatedor forte na oratória e na argumentação e do outro alguém mais pragmático e sem habilidade com as palavras e o vencedor estará previamente definido. Outra prática é a de colocar comentaristas ou debatedores de uma mesma corrente política ou ideológica; fica ainda mais evidente a indução da mensagem que se deseja transmitir.

Felizmente alguns veículos da grande mídia vêm tomando posições fortes em relação a esse fato, orientando os seus profissionais a evitar manifestações políticas pessoais contrárias às posições da sua linha editorial, pois fatos como esses poderão vir a comprometer o grau de isenção com consequente perda da credibilidade do veículo de comunicação. Levam-se décadas para construir credibilidade, mas bastam alguns meses para perdê-la. A informação com vistas à proteção das pessoas não deve ultrapassar a barreira do medo, pois o pânico só as fragiliza tanto física quanto emocionalmente. Essa é a eficiente metodologia utilizada pelos pais na educação dos seus filhos, de evidenciar as ameaças, despertar o medo como forma de proteção, mas nunca levar a criança ao estado de pânico.

Os dramas sociais e familiares, as doenças mentais e até a taxa de suicídios vêm aumentando nesta época de confinamento, parte devido ao próprio isolamento social, mas também agravadas por um excesso na dose pessimista das informações diariamente difundidas.

E voltando ao título deste artigo, a resiliência da população às epidemias ou qualquer outro tipo de desastre que possa atingir o país, só aumentará com um bom planejamento, planos de contingência, simulação de situações críticas e preparação de toda a cadeia logística e produtiva necessária para o enfrentamento em situações de emergência, ou de guerra, como muito se tem dito atualmente. Mas para isso, as experiências passadas, com bases de dados e informações confiáveis, serão fundamentais.

Não nos esqueçamos da famosa frase do senador americano Hiram Johnson, segundo a qual, na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima. Protejam-se das falsas informações e também daquelas fora de contexto. Temos o direito e a capacidade de construir o nosso próprio entendimento dos fatos.


O blog Proteja-se trata de segurança humana de uma forma geral, pois nenhum sistema de proteção civil do mundo consegue garantir a total segurança do indivíduo sem que o mesmo adote procedimentos de autoproteção. O blog quer ajudar a desenvolver no Brasil a cultura da autoproteção. O autor do blog é Airton Bodstein, Doutor em Química Ambiental pela Université de Rennes I, França e Pós-doutorado na Oregon State University, EUA. Fundador do Mestrado em Defesa e Segurança Civil e Professor Titular da Universidade Federal Fluminense. Fundador e atual Presidente da ABRRD – Associação Brasileira de Redução de Riscos de Desastres.
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