Da pré à pandemia instalada

Já se passaram pouco mais de seis meses desde que o mundo tomou conhecimento da existência de um vírus ameaçador que estava provocando uma corrida de pessoas, com problemas respiratórios graves, aos hospitais da cidade de Wuhan, na província de Hubei na distante China. Distante aos olhos da maioria da população brasileira que não se preocupou com tal notícia e tampouco poderia imaginar o que estava por vir. O problema estava localizado no outro lado do planeta e não havia muito com o que se preocupar. Estávamos em pleno verão no hemisfério sul, férias escolares, baladas, restaurantes, praias, shoppings, estádios de futebol cheios, enfim como em todo inicio de ano no Brasil, a melhor época para aproveitar a vida, com muito sol e calor, sem falar nos preparativos para a maior festa popular brasileira, o carnaval. Os noticiários da grande mídia naquele mês de janeiro também informavam que não havia risco de epidemia – muito menos de uma pandemia -, inclusive com o depoimento de vários médicos especialistas no assunto. E assim o Carnaval correu solto, com milhões de pessoas aglomeradas nas ruas das grandes cidades do país e provavelmente já disseminando o vírus que se espalhava pelo mundo há pelo menos três meses.

Também a Organização Mundial da Saúde não parecia muito preocupada com os riscos de transmissão do vírus em escala mundial, ao comunicar nos primeiros momentos de evolução da doença, que não havia risco de uma epidemia (nem se falava ainda em pandemia); divulgou somente um comunicado de Alerta Sanitário – ver a cronologia da resposta da OMS à COVID-19‎ no site da organização. Em 14 de janeiro de 2020 a OMS convocou uma conferência de imprensa afirmando que, “com base na experiência com patógenos respiratórios, haveria um risco de possível transmissão limitada entre seres humanos”. No mesmo dia a OMS publica no Twitter que as investigações preliminares realizadas pelas autoridades chinesas revelaram que “não há evidências claras de transmissão entre seres humanos”.

Em 30 de janeiro de 2020 o Diretor-Geral declara que o surto do novo coronavírus constitui Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) e passaram-se mais doze dias para que a doença provocada pelo novo vírus fosse batizada com o nome de COVID-19, sendo 19 o marco anual do inicio da doença. Somente em 11 de março de 2020, bastante  preocupada com os níveis alarmantes de disseminação e severidade e os níveis alarmantes de inação, a OMS conclui em sua avaliação que a COVID-19 pode ser considerada uma pandemia. Quase três meses se passaram para se chegar a essa conclusão. Em um mundo globalizado e de alta tecnologia como o atual, as distâncias estão cada vez mais reduzidas e um voo de pouco mais de 24h, ou seja, apenas um dia é o suficiente para interligar os povos de Brasil e China, do outro lado do mundo. No caso de um vírus circulante, com alto poder de contaminação, algumas semanas já seriam suficientes para contaminar milhões de pessoas em todo o mundo e foi o que, lamentavelmente, ocorreu.

E vale lembrar que a mesma OMS se posicionou contrária à proposta de alguns países em fechar as fronteiras da China quando a doença ainda estava confinada naquele país, mas que certamente, o novo coronavírus já circulava rapidamente em todo o planeta. Também houve uma orientação para todos os países de que as máscaras de proteção individual só deveriam ser utilizadas pelos agentes de saúde, frente ao risco de um desabastecimento desses equipamentos em escala mundial que colocaria em risco a vida desses profissionais. Isso serviu para aumentar rapidamente o custo desse material no mercado e a população continuou a se contaminar sem proteção alguma, o que levaria a um colapso nos hospitais de vários países. É curioso que ninguém pensou antes que máscaras simples, de tecido comum, seriam eficazes para evitar a transmissão do vírus e que poderiam ser produzidas pela própria população como ocorreu mais tarde. Ao mesmo tempo começou uma busca desenfreada por ventiladores para equipar os CTIs, e o mesmo efeito de oferta e demanda, inflacionou enormemente o custo desses equipamentos; o mundo, atônito, percebeu então que apenas um país concentrava quase toda a produção de diversos insumos necessários ao combate efetivo da pandemia.

Vemos agora o depoimento de vários responsáveis pelo atendimento de doentes graves da Covid em grandes hospitais informando que, ventiladores não são mais a primeira opção no tratamento de casos graves de coronavírus, como afirmou recentemente o pneumologista Carlos Alberto Barros Franco, um dos primeiros médicos do país a tratar a Covid-19 durante o simpósio “Covid-19 — Que doença é essa?”. Isso sem falar na montagem dos hospitais de campanha, sem licitação, dada a urgência, hoje motivo de várias denúncias de corrupção; da guerra aberta entre grupos científicos e políticos, a favor e contra o uso de certos medicamentos, com eficácia comprovada ou não, na prevenção e tratamento da doença; e a corrida mundial pela descoberta e disponibilidade para todo o mundo de uma vacina que se mostre eficaz na prevenção da covid-19, negócio de trilhões de dólares, considerando que será necessário imunizar quase toda a população do planeta. Mas o que é falso ou verdadeiro em tudo o que vimos e ouvimos em todos os veículos de comunicação nesses sete meses de pandemia? Fechar ou não as fronteiras internacionais, usar ou não máscaras de proteção individual, ficar ou não confinado nas residências, paralisar ou não a economia, usar ou não medicamentos preventivos? Qual o melhor protocolo  de tratamento da doença nos hospitais? O lockdown é comprovadamente necessário?

É lamentável admitir que o mundo vive atualmente uma enorme crise de falta de credibilidade, tanto de pessoas quanto de instituições, muitas delas que serviram de referência nas suas áreas de competência durante décadas. A estratégia atual de pessoas, grupos ou instituições que objetivam falsear a verdade com interesses múltiplos é produzir, diariamente, centenas ou milhares de informações de forma que o indivíduo comum mal tenha tempo de ler, muito menos de processar e praticamente seja incapaz de analisar essas informações. Assim torna-se presa fácil da manipulação e do improviso. A segurança da população depende de ações pró-ativas de preparação e prevenção contra graves ameaças futuras e para isso é preciso contar com bases de dados sólidas, confiáveis e isentas de interesses políticos, econômicos ou ideológicos.

Quando tudo terminar, os tratamentos e vacinas estiverem disponíveis para a Covid-19, o retorno da população às suas atividades diárias, mesmo dentro de novos paradigmas, será o momento de começar a preparar o mundo para melhor enfrentar futuras situações de crise de grande magnitude como esta vivida em 2020. Todos os protocolos deverão ser revistos, da prevenção em saúde, das estruturas hospitalares, da cadeia de suprimentos, da garantia dos empregos, das cadeias produtivas, da logística, do abastecimento, dos insumos e tudo que envolva a sobrevivência diária das pessoas.

Todas as experiências boas e ruins, vividas durante a pandemia da Covid-19 deverão ser amplamente estudadas, analisadas a fim de que possam trazer respostas embasadas e robustas (para utilizar o vocabulário em moda), mas principalmente convincentes, pois certamente, muita coisa terá que ser explicada à população mundial. Por ora, tudo que podemos fazer é continuar a nos proteger.  


O blog Proteja-se trata de segurança humana de uma forma geral, pois nenhum sistema de proteção civil do mundo consegue garantir a total segurança do indivíduo sem que o mesmo adote procedimentos de autoproteção. O blog quer ajudar a desenvolver no Brasil a cultura da autoproteção. O autor do blog é Airton Bodstein, Doutor em Química Ambiental pela Université de Rennes I, França e Pós-doutorado na Oregon State University, EUA. Fundador do Mestrado em Defesa e Segurança Civil e Professor Titular da Universidade Federal Fluminense. Fundador e atual Presidente da ABRRD – Associação Brasileira de Redução de Riscos de Desastres.
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