Estamos perdendo mais uma oportunidade para aprender com a tragédia dos outros

Este é o primeiro post do nosso blog e, antes de mais nada, acho importante falar sobre a nossa proposta. A ideia do blog é apresentar casos, novidades e tendências da área de incêndio que estão sendo discutidas em outros países, mas que ainda não chegaram por aqui ou ainda estão sendo tratadas de forma tímida no país.

Hoje gostaria de falar sobre a importância de aprendermos com a experiência dos outros. É comum dizermos que o fogo queima da mesma maneira em qualquer parte do mundo, mas será que acreditamos nisso de verdade? Se acreditamos, por que temos tantas normas e soluções diferentes para um mesmo problema? Um depósito de celulares na China queima do mesmo modo que um depósito de celulares na Finlândia, na Austrália ou no Brasil. Claro que todo país tem particularidades locais que devem ser tratadas localmente, mas essas são geralmente exceções e não a regra geral.

Os métodos construtivos utilizados em um país podem ser um fator determinante na segurança contra incêndio. Métodos de proteção para uma daquelas megabarracas de praia em Fortaleza, com centenas de metros quadrados de telhado de palha, certamente não são assunto das normas europeias ou americanas. Este é um tema que nós precisamos desenvolver (sem “achismos”, mas com pesquisa) para resolver um problema nosso. No entanto, não estou convencido que um novo edifício comercial em São Paulo ou Nova Deli, ou um depósito de celulares em Xangai ou Campinas sejam muito diferentes e precisem ser protegidos de formas diferentes.

Se é que isso é verdade, me pergunto por que teimamos em não aproveitar as tragédias em outros países como oportunidade de aprendizado? Por que continuamos a ignorar grandes incêndios que poderiam ser excelentes oportunidades para criação de legislação, normas e políticas públicas, e ficamos esperando que o mesmo tipo de incêndio aconteça por aqui para tomarmos alguma atitude prática?

Em junho de 2017 aconteceu um incêndio catastrófico em Londres que foi acompanhado ao vivo por todos nós. O incêndio do edifício residencial Grenfell Tower, de 24 andares, teve início no refrigerador de um apartamento no 4º andar e se propagou externamente pela fachada causando 72 mortes e mais de 70 feridos. Toda a fachada do edifício era recoberta por um material laminado composto por uma alma de polietileno entre camadas externas de alumínio. A combinação do material e da maneira como foi utilizado, facilitando a formação do efeito chaminé, causaram a tragédia que foi considerada o maior incêndio residencial na Inglaterra desde a Segunda Guerra Mundial.

Este não foi o único incêndio ocorrido em edifícios com esse tipo de painel sanduiche de polietileno e alumínio. Em todos os incêndios a seguir, ocorridos nos últimos dez anos, o uso de um revestimento externo combustível foi considerado a razão principal para a propagação do incêndio pelo exterior do edifício. Mais detalhes aqui.

  • 2009 – Torre CCTV – Peking, China
  • 2010 – Wooshin Golden Suites – Coréia do Sul
  • 2010 – Xangai, China
  • 2012 – Torre Al Tayer – UAE
  • 2012 – Torre Mermoz – Roubaix, Françca
  • 2012 – Torre Tamweel – Dubai, UAE
  • 2014 – Torre Lacrosse – Melbourne, Austrália
  • 2015 e 2017 – The Marina Torch – Dubai, UAE
  • 2015 – The Address Downtown – Dubai, UAE
  • 2016 – Ramat Gan – Israel
  • 2016 – Neo Soho – Jakarta, Indonesia
  • 2018 – Employees Provident Fund – Selangor, Malaysia
  • 2019 – Neo200 – Melbourne, Austrália

Há dois anos o Reino Unido trabalha numa grande revisão em seu regulamento de segurança contra incêndio, tentando buscar soluções para o problema.

Entre algumas das medidas tomadas na Inglaterra, estão a criação de um cadastro geral dos edifícios residenciais com mais de 18 metros de altura que possuem revestimento externo combustível de alumínio e polietileno. Foram identificados mais de 400 edifícios nessas condições, que são agora obrigados a realizar análise de risco, buscando principalmente afastar fontes de ignição, tais como áreas de estacionamento, equipamentos elétricos ou trabalhos de manutenção, das proximidades do revestimento combustível.

O governo também proibiu o uso de materiais combustíveis na construção de novos edifícios residenciais. A proibição envolve não somente os revestimentos de fachada, mas também os elementos estruturais. Passaram a ser permitidos somente produtos classificados como de combustibilidade A2 ou inferior de acordo com a norma EN 13501.

Mudanças na legislação de incêndio estão atingindo também a área de sprinklers. A altura mínima das edificações que requerem instalação obrigatória de sprinklers passará a ser 11 metros, uma redução significativa dos 30 metros atuais. Mais informações sobre o efeito de sprinklers em incêndios propagados por revestimento externo combustível podem ser encontradas aqui.

Além disso, foi criada uma linha de crédito de 800 milhões de libras (equivalente aproximadamente a 4,5 bilhões de reais) para proprietários que queiram substituir o revestimento combustível de suas edificações.

Aqui no Brasil, pouco ou quase nada foi feito para começarmos a entender o problema. Não temos ideia de quantos prédios possuem revestimento externo combustível que poderiam pôr em risco seus ocupantes e nem temos um programa para reduzir a possibilidade de ignição das fachadas. Além disso, não estão sendo tomadas medidas para eliminar o problema em novas construções, ou seja, mesmo depois de tantas tragédias e tantos exemplos de como minimizar o risco de incêndio nesses edifícios, estamos perdendo mais uma oportunidade de aprender com os incêndios dos outros.


Os incêndios são iguais tanto aqui no Brasil como em qualquer outro lugar do planeta. Este blog pretende abrir espaço para debater e apresentar diferentes casos e experiências de segurança contra incêndio no Brasil e no mundo, incluindo aspectos regulatórios da proteção contra incêndios e discutir como a legislação, regulamentação e normas técnicas afetam a segurança da sociedade e o dia a dia dos profissionais de incêndio. Marcelo Lima, responsável por este blog, é Engenheiro Químico, atua na área de incêndio deste 1987, com vivência na área de análise de riscos, normas técnicas e certificação de produtos. É o diretor geral do Instituto Sprinkler Brasil e consultor sênior da resseguradora FM Global.
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