Os altos riscos de acidentes domésticos

Vamos tratar hoje de um tema bastante conhecido, mas infelizmente muito negligenciado pela maioria da população, ou seja, os riscos de acidentes domésticos que, em muitos casos, podem levar alguém ao hospital e dependendo do grau de gravidade do acidente, até a óbito. A residência é vista, no imaginário popular, como uma continuidade do útero materno; é lá que nos sentimos acolhidos, confortáveis e, principalmente, seguros. Trata-se de um sentimento e não de uma realidade. O lar representa o centro de um microespaço físico que inclui o quarteirão, as redondezas mais próximas e o bairro, espaço esse que eu vou chamar de zona de segurança 1. Ao se afastar dessa Z1 entramos na zona de segurança 2, agora ampliada para os limites da cidade em que vivemos e na sequência, a zona de segurança 3, representada por todo o território que limita o país; não necessariamente o de origem, mas aquele em que vivemos depois de algum tempo.

Não existe uma segurança plena, total, absoluta, mas sim um sentimento de segurança que vai sendo construído no dia a dia, em função de uma maior ou menor percepção de risco. Quanto menos tempo se vive em um novo ambiente, mais ameaçador ele parece ser e na medida em que os dias, meses e anos passam, essa falsa percepção de ameaça inicial vai se transformando em uma sensação de conforto, confiança, familiaridade, que nos reporta ao nosso ambiente familiar, agradável e seguro. Todos aqueles que já mudaram de endereço residencial ou mesmo profissional depois de ter vivido, certo tempo, em um mesmo local já passaram por isso. Maior é essa sensação quando se muda de cidade, estado e muito maior ainda, quando se muda de país. Neste último caso, incorporar a mudança da língua – na maioria dos casos – dos hábitos e da cultura como um todo, leva bem mais tempo.

Vivi claramente essa experiência quando fui fazer um doutorado na França em que tudo era muito diferente da minha realidade no Brasil; estamos falando de algumas décadas atrás, antes da globalização que tornou países muito diferentes culturalmente, e em diferentes estágios de desenvolvimento, algo parecidos. Diferentemente dos primeiros meses de adaptação, dois anos após já me sentia totalmente “em casa” naquele novo ambiente, a ponto de, ao retornar de viagens a outros países europeus, era como se estivesse voltando para “o meu” país.  No inicio me causou certa estranheza, pois jamais me senti tão brasileiro olhando o Brasil de fora, mas logo percebi que essa ilusão vinha do tal sentimento de segurança do lar, não importa onde ele esteja. A minha casa na França era, na minha percepção, o meu lar brasileiro, querido e seguro.

Essa é a armadilha da falsa sensação de segurança que sentimos quando estamos em casa ou mesmo próximos a ela. Muitos acidentes graves ocorrem com motociclistas quando eles deixam de usar o capacete porque vão somente à padaria, a apenas algumas quadras de distância, ou mesmo com motoristas que, pela mesma razão, não colocam o cinto de segurança. E não estão mais sujeitos a esta sensação, como muitos pensam, somente aquelas pessoas pouco esclarecidas ou com baixa percepção de risco ou até vistas como irresponsáveis. A sensação de segurança do lar vem do útero, faz parte da nossa cultura, da nossa vida.

Os profissionais de defesa civil e também os da área da saúde, conhecem bem essa realidade. São milhares de pessoas, crianças, jovens, adultos e idosos, que chegam diariamente aos hospitais com problemas, dos mais simples aos mais graves, provocados por acidentes domésticos. Como exemplo podemos citar casos recentes ocorridos com pessoas públicas, que por essa razão tiveram grande repercussão na mídia, como os acidentes do Alex Escobar, do Raul Gil, do Presidente da República e do Gugu Liberato, este último, infelizmente, com desfecho fatal. É claro que, estatisticamente, são as crianças e os idosos, os mais vulneráveis aos acidentes domésticos. As crianças por desconhecimento dos riscos, quando ingerem produtos perigosos, engolem pequenos objetos, se afogam nas piscinas ou se queimam no fogão. Os idosos são, geralmente, vítimas de quedas, no banheiro (mais comum), ou em outros cômodos da casa, isto porque estão em plena lucidez mental, que os levam a querer realizar todas as atividades as quais estavam habituados ao longo dos anos; mas agora o corpo já não responde da mesma forma. Somado a isso o maior peso, menor mobilidade, doenças inerentes à própria idade se comparados às crianças, coloca os idosos como o grupo mais vulnerável a acidentes domésticos, só ultrapassado por aquele grupo portador de doenças limitantes, físicas ou mentais. Entendendo o risco dos idosos a acidentes e desastres, com uma visão de segurança humana, publiquei um artigo com base em um estudo que gerou uma dissertação de mestrado em defesa e segurança civil da UFF sobre o tema (Revista Ambiente & Sociedade1, São Paulo, 2014).

Nesses tempos de maior permanência em casa de forma compulsória, para milhões de brasileiros, o potencial de riscos de acidentes domésticos aumenta sobremaneira, principalmente entre as crianças. A Sociedade Brasileira de Pediatria estima em 25% o aumento de casos durante a quarentena, a maioria provocada por quedas nas correrias, típicas das crianças, em espaços físicos restritos. Vale lembrar que, nem sempre os pequenos estão tendo um acompanhamento direto dos responsáveis, uma vez que estes, apesar de fisicamente próximos, também por conta do confinamento, continuam a exercer as suas obrigações profissionais, agora em sistema de Home Office. Outro alerta sobre os acidentes domésticos em tempos de quarentena foi dado pelos bombeiros, que indicam um aumento de 60% dos casos no estado de São Paulo, durante o isolamento; o elevado uso do álcool em gel, também muito inflamável, tem colaborado com essas estatísticas. Portanto, fica aqui o recado, redobrem a atenção, principalmente com as crianças e os idosos e protejam-se.


O blog Proteja-se trata de segurança humana de uma forma geral, pois nenhum sistema de proteção civil do mundo consegue garantir a total segurança do indivíduo sem que o mesmo adote procedimentos de autoproteção. O blog quer ajudar a desenvolver no Brasil a cultura da autoproteção. O autor do blog é Airton Bodstein, Doutor em Química Ambiental pela Université de Rennes I, França e Pós-doutorado na Oregon State University, EUA. Fundador do Mestrado em Defesa e Segurança Civil e Professor Titular da Universidade Federal Fluminense. Fundador e atual Presidente da ABRRD – Associação Brasileira de Redução de Riscos de Desastres.
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